Flores de Grimm
Um atestado de óbito nas mãos, a florista de Copacabana morreu. Na loja da esquina, onde o vidro encarcerara as rosas recém chegadas, de onde vinham as rosas que coloriam os vasos de Copacabana, de onde vinham o fulgor das travessias, as constantes privações urbanas no caos de bueiros explosivos, tremores nas catacombas, paralelepípedos rachados, pedras portuguesas soltas ao léu, inertes, ou quase inertes, as rosas chegavam nos tons de encomenda e uma dúzia delas parava na mesa de jantar, ou na cômoda, e garantia ares de nobreza. Os botões disparados expressavam contentamento porque como as mulheres as rosas mentem felicidade desabrocham mesmo prontas a esmorecer pelo caule e a ignorar a água nova e fresca recém depositada no vaso. As rosas prontificam-se a serem exuberantes, rainhas da loja de esquina. As orquídeas impressionam mas não são rosas e jamais o serão. A batalha não se trava entre Rosa Branca e Rosa Vermelha como no conto de Grimm, e sim entre a Rosa e a Orquídea.
Elementos da Manga
Tem pano para manga. As meninas vendedoras de mangas índias ou ciganas sanfoneiras castigavam calçada com o carrinho de feira empanturrado de mangas. Não se sabia de onde traziam as frutas. As mangueiras não existindo acima do Equador, as meninas vendedoras produziam as frutas roliças e praticavam o exorcismo da palma da mão. Rostos viçosos um gracejo.
As meninas montam a mesa colocam a tábua branca de plástico e afiam duas facas as quais usam para descascar e cortar a carne amarela das bolas ovais que podiam ser objeto de malabarismo no circo. Nestas meninas que cortam mangas há uma parvalhice mentirosa porque as meninas são também mulheres de vinte, trinta, quarenta, cinquenta anos e em casa elas guardam uma penca de filhos e no quarto de assoalho rasgado não pode faltar o marido pisco sour.
Quando você fita as vendedoras destes bolos da natureza de difícil digestão, você quer acreditar que elas chegaram na calçada vindas de helicóptero e acreditam em duendes da Amazônia.
E, por falar em duende. Tenho um metro e trinta, os ossos duros e apetece-me assustar crianças com um sorriso à altura delas, com um ou outro dente de prata posso ameaçar sem que os progenitores me percebam e um grito um choro infantil motivados pela minha cara dão me um prazer redondo até o coração gargalha no orgulho da pequenez perversa.
Aproximo-me das meninas vendedoras de manga de estatura superior rostos de bocas esparramadas e dentes brilhosos marfim puro e quero comprar manga, no detalhe: detesto comer mangas e ojerizo o odor do amarelo canário.
Vai levar? Faço que não escuto. Um duende pode encarar, não? Ela repete, vai levar? Coloco o dedo no queixo onde dois fragmentos de carne convergem para formar uma dobrinha sou feio mas tenho um queixo com dobrinha um leve toque de charme. Se eu fôr levar preciso me decidir no número de frutas e se as meninas embrulham-nas em jornal ou cortam-nas já descascadas para entregarem-nas em vasilhas de plástico transparente com tampa e fita adesiva. A menina da esquerda dá um risinho, a da direita, também, estou dividido e caramba para que lado vou?
Duas mangas maduras. Com casca.
Mando embrulhar tiro uma nota de cinco do bolso da calça jeans abraço o pacote e saio caminhando na turbulência de chumbo de nuvens sorrateiras. Tenho gênio irritadiço e desgosto tanto do leitor (você!) quanto das mangas. Quando nasci, mamãe dizia que comia mangas e me amamentava e eu esperneava de cólicas porque digeria o mal digerido pela mamãe e a velha não deixara segredos e já faz dois anos que não a visito na unidade intensiva porque me recuso a subir num banquinho para não ser reconhecido e os banquinhos do hospital enferrujaram e a ferrugem geme como a voz presa na garganta de mamãe.
Desvio com as mangas embrulhadas norte sul leste oeste caminho com as mangas uma náusea sobe pelas narinas eternamente abertas do meu nariz são corredores sem filtro e um pensamento curioso me atinge defunto não fecha as narinas nem para expirar a última. Se o homem fabricasse o homem, decerto os mecanismos seriam distintos. Mãos que não deixassem escapulir mangas liquefeitas, e duendes de pernas compridas como pernas de pau.
Conto publicado originalmente em http://www.pnetliteratura.pt em outubro de 2012.