“Nasci no Rio mas moro em Nova York . Integro a Universidad Desconocida, do Brooklyn, que reúne autores ibero-americanos para apresentações, cursos e conversas. Comecei a publicar pelo coletivo Dulcinéia Catadora, parte do movimento das cartoneras na América Latina.”
Conte algo que não sei.
Tem um livro de “koans”, que são frases enigmáticas do budismo zen, onde há o seguinte mistério: “se você bate na palma da mão, qual o som mais forte — o da mão esquerda ou o da mão direita?” Pra mim, literatura se faz disso, de enigmas, vários sem respostas, alguns, belos, outros, absurdos.
O que existe de novidade na produção literária latino-americana?
A produção atual me entusiasma verdadeiramente. Contamos com autores de qualidade, impulsionados pelo vigor das editoras independentes. Não é que se possa reinventar a roda. Às vezes, a gente acha que está diante de uma invenção, até ver que aquilo já foi feito. Ainda assim, encontramos novos livros que arriscam extrapolar gêneros literários, ultrapassam a lógica, mergulham ligeiro, como pede a nossa realidade.
Ainda pode se falar em ‘realismo mágico’ nessa produção?
Eu agradeço todo dia ao Roberto Bolaño por ter aberto uma nova porta. Toda essa tradição, rotulada como “realismo mágico” tem um valor enorme, é claro. Mas, também prejudicou, e ainda afeta a imagem da criação latino-americana. Nos Estados Unidos, se um latino fala que escreve ficção, logo é questionado “ah, é realismo mágico?” Isso ficou marcado.
Como pensar literatura num continente tão desigual e violento como a América Latina?
Não cabe à literatura escolher temas. Escrever é como qualquer outra arte, o artista aceita o que aparece. Para mim, o escritor latino-americano é um híbrido de poeta e detetive selvagem atrás de uma grande incógnita. A América Latina nos mantém num labirinto, talvez sem saída, como nesse “koan”, onde não se sabe qual mão emite o som. O que é que nos levou a essa condição? No contato pessoal as pessoas são muito amáveis, mas vivemos cercados por uma sombra monstruosa, entre a beleza e o espanto.
Como é ser uma escritora latina na terra de Trump?
Eu vejo a literatura sempre no papel de romper barreiras, no papel de ruptura de pensamentos estagnados. Lamentavelmente, o efeito literário acaba sendo mais demorado do que os avanços no mundo real, na política.
Você teve livros lançados pelo movimento das “cartoneras”. O que é esse movimento?
É um movimento em toda a América Latina de integração da literatura aos catadores de papel. As pessoas recolhem papelão na rua, e o coletivo produz livros. Os autores doam o conteúdo, e os catadores costuram e pintam os livros. Antes, eles leem os livros para prepararem as capas de acordo com a leitura deles.
Como vê a ausência de negros e mulheres nos circuitos literários?
Claro que há a importância das vozes, mas pra mim o mundo ideal é o do autor abstinente. Quem deve falar é o livro, que tem vida própria. Eu gostaria de ver independência entre o autor como pessoa e sua obra. Inclusive porque as vezes você conhece um escritor e ele é intragável, mas o livro é fantástico. Agora, as oportunidades tem de ser dadas, e o Brasil é um país de uma injustiça aberrante e que informa quem nós somos.
Publicado originalmente em “O Globo”, em maio de 2017.