NOSOTROS: 20 Contos latino-americanos

NOSOTROS: 20 Contos latino-americanos

Quantas vezes lamentamos que o Brasil, apesar de sua localização geográfica, pareça estar à deriva, alheio aos países que o rodeiam? Essa impressão deve-se ao fato de que somos o único país latino-americano que tem o português como língua nacional.

Algumas circunstâncias políticas, alguns líderes governamentais com discurso nacionalista, a cicatriz e a mágoa da Guerra do Paraguai esconderam o fato de que o que nos une é muito mais poderoso do que nossas diferenças. Estamos unidos porque estivemos, durante séculos, sob o domínio férreo de duas potências europeias que rapidamente se tornaram decadentes. Portugal e Espanha logo perceberam que necessitavam das colônias americanas para permanecerem com alguma relevância política na Europa.

As estratégias adotadas pelos dois países com relação a seus domínios americanos foram diferentes. No turbulento século XIX, Portugal, mais pragmático, manobrou politicamente para manter-se influente em seus domínios, transformando o Brasil, de colônia em império com algumas viagens e declarações oportunas. Já os espanhóis, por sua reação mais próxima ao orgulho monárquico, foi perdendo territórios com lutas de independência surgidas por toda a região. Assim sendo, nossos vizinhos chegaram antes de nós à república, embora divididos em muitos países.

Hoje em dia, são 20 os países que formam a América Latina e, aqui nesta antologia, todos aparecem vistos através dos olhos de autores brasileiros, de diferentes estilos e origens. Creio que uma bela imagem para identificar a homogeneidade na diferença seja o quadro citado por Igor Dias em sua história localizada em Cuba. O quadro Mundo soñado retrata um mapa-múndi feito com centenas de imagens de Cuba que, agrupadas, tomam a forma de todos os países do mundo. Aqui neste livro reconhecemos a América Latina em todas as histórias contadas, como se cada país fosse formado por um mosaico de pequenos desenhos da América Latina, sempre a mesma, sempre distinta.
As histórias narradas diferem, mas se aproximam em estilos, fragmentos que, unidos, traçam um perfil apropriado para ressignificar nossa história e nossas preocupações, cada vez mais semelhantes. Um livro que reúne dentro dos contos uma quase enciclopédia de citações literárias, musicais, políticas, históricas e de artes visuais.
O mosaico criado contempla crenças, costumes, sensualidade, fantasia beirando o real maravilhoso, e a realidade quase paradisíaca corrompida pela presença da serpente, do mal.
Em pelo menos três das histórias, sente-se a presença do “grande irmão” do Norte, desse país que se apropriou do nome de um continente e que tenta impor regras que são desafiadas seja pela violência, como pela deformação ou pela carnavalização.
Cesar Cardoso acompanha o “Sapo” mexicano em sua travessia, de uma fronteira a outra, ultrapassando seus limites. Rodrigo Maceira deforma os ideais capitalistas adotados na Nicarágua fluidificando seus rituais através da música, enquanto no Brasil tropicalista de Sant’Anna, o mundo inteiro se aboleta em terras brasileiras para mostrar que a vida em “Revolution” ou Revolução, nesta terra em transe, é coisa multifacetada, inevitável e carnavalizada.

Muitos autores falam da morte, tema que preocupa e se faz presente sob diferentes pontos de vista. Seja através da ameaça da violência dos elementos naturais, em Cotopaxi, transformada em afirmação de vida, no Equador de Vivian Pizzinga; seja exatamente no inverso, em que a descoberta da maternidade revela-se fatal no ar rarefeito em Cochabamba, na Bolívia de Danielle Schlossarek; ou mesmo a morte como um jogo, de dominó ou de palavras (na República Dominicana de André Timm e no Chile de Flávia Iriarte), creio que a constância do tema se deve ao fato de vivermos numa região em que a vida humana é tão pouco valorizada, e onde as pessoas são descartáveis. Mesmo nos contos em que a política assume o tema principal, a morte ronda, se anuncia, ameaça e motiva as ações.

Já que falamos em política, o tema surge sob a forma de diário – lembrando um dos livros icônicos da região, os diários de Che Guevara – e Caco Ishak consegue fazer um resumo da situação atual, desmascarando as motivações escusas que determinam o jogo político por toda a região amazônica ao falar sobre a Colômbia. Ronaldo Bressane, cujo país é Honduras, num jogo de deslocamento e superposições, trabalha a Honduras localizada na cidade de São Paulo, sem deixar de tratar do país em si. Cria, assim, a carta que um velho militante, agora lutando para manter um lugar pessoal onde ainda se sinta vivo, escreve ao neto que ocupa um outro país para manter a sociedade viva. Na Guatemala de Guilherme Preger dois textos se entrecruzam, e as memórias do engenheiro Thiago Santos explicam excertos jornalísticos que noticiam seu desaparecimento, num possível sequestro seguido de assassinato. E podemos voltar aos contos já mencionados de Iriarte e Sant’Anna pois neles também a história política do continente se faz presente, mesmo quando deliberadamente esquecida.

Outro tema recorrente é o da literatura, que mostra como as leituras de autores latino-americanos estão vivas no Brasil. O universo literário se apresenta no texto de Leandro Jardim sobre o Paraguai, organizado em torno de um simpósio de literatura paraguaia, em que um professor do sexo masculino vê seu prestígio depender de uma professora/poeta. Ou mesmo no conto de Leonardo Marona sobre a Venezuela, para onde vai enviado por uma “produtora cultural”, uma figura que se aproveita das artes e dos artistas para seus interesses comerciais enquanto infantiliza o escritor/artista. Os livros são também o fulcro narrativo do conto de Alexandre Brandão, que, ao visitar o Peru, já não sabe se visita o espaço geográfico ou o literário. Katia Gerlach ultrapassa as fronteiras da Argentina e, com hábeis e sucessivas citações de autores contemporâneos e do passado, vai se deslocando e chega até a Europa, enraizando-se num surrealismo nunca totalmente abandonado entre nós. Seu jogo de fragmentos e de superposições elípticas desafiam o leitor, convidando-o a reconhecer analogias que só ampliam as referências e o prazer da leitura.

O papel do escritor, retratado por Marcelo Mirisola nas suas reflexões sobre o Uruguai, é examinar o elemento urbano, e apontar para a arraia miúda, tão cara a Fernão Lopes, cronista medieval, que já percebera que na vida dos despossuídos é onde se esconde o espírito do povo. Numa “epifania ao contrário”, o demiurgo, instado a andar com as próprias pernas faz sua autocrítica, pois estas nunca o levaram muito longe.

Mesmo no triangulo amoroso criado por Myriam Campello sentimos que é impossível escaparmos de nós mesmos: No Panamá, o lagarto quase afogado, a serpente de pedra sufocada na folhagem mostram que o caminho apontado pela “seta morena” é tão enganador como as promessas paradisíacas da terra. E que não existe deus, seja ele literário, católico, africano ou pré-colombiano que consiga domar a voragem – o desejo de lucro e a cupidez capitalista, filhos do passado colonialista – que assola a região.

Num belo conto violento sobre o Haiti, a mulher negra, que não sabemos se pertence apenas à História, depois de sofrer e se desumanizar nas mãos dos senhores brancos, julga encontrar seu lugar entre os rebeldes cimarrões e na liberação que a religião afro parece lhe trazer. Verena Cavalcante faz de sua personagem uma sobrevivente, assim como Maiara Líbano, em seu conto tragicômico, faz de seu empreendedor salvadorenho, um esperto sobrevivente, que, no entanto, acaba vítima de seu próprio sucesso no negócio de caixões. Vítimas inconscientes, iludidas, como o personagem do conto de Renato Lemos, ambientado na Costa Rica, falando de futebol, orgulhoso de suas habilidades, sendo, na verdade, mais uma cobaia usada apenas para a expansão dos negócios de mais um tipo de droga, as drogas legais, tão fatais e violentas quanto as outras.

Se essas histórias apresentam quadros muitas vezes violentos e desoladores, em nenhum momento se perde o sentimento de que a mudança é possível, e que a América Latina, vista pelos olhos da literatura, revela que há um sentido comum que poderá ser revertido quando aprendermos a decifrar nossos palimpsestos. – Lucia Bettencourt


Kátia Gerlach foi a organizadora do projeto publicado pela editora Oito e Meio.

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