Jogos (Ben)ditos e Folias (Mal)ditas

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“O leitor que degusta os deliciosos e riquíssimos contos deste livro de Katia Gerlach provavelmente vai também comprar pão na padaria, ir à uma casa de campo, voltar à infância e viver experiências nunca dantes vividas, tudo sem sair do lugar físico.É que o corpo aparentemente inerte está, na verdade, flutuando por passagens e paisagens que lhes dão a possibilidade da presença simultânea. A física quântica pode lhe provar isso. E é exatamente com as vicissitudes do mesmo espaço-tempo que Katia magistralmente joga em seus contos.Seus personagens, ordinários para o cotidiano, mas extremamente viajantes e profundos para a literatura, nunca estão no mesmo lugar, mesmo quando a ação parece única. O fio condutor de suas histórias não é reto, nem se apega à lógica, assim como nosso cérebro e nossas vivências. Mas o trunfo de Katia, e sua assinatura mais peculiar, é brincar com o vaivém de modo a não fazer o leitor perder a história de vista.Katia transcende o cotidiano e conecta a alma humana ao concreto da rua, que acaba pulsando, como neste trecho “Vera morava no batimento retangular que cobria o quarteirão inteiro, onde tombavam pedras sobre pedras como condenação”. E dá de presente aos seus personagens a opção de estar sem estar, esta que todos nós desejamos durante as formalidades diárias: “Sem cumprimentá-lo, a militante quis fazer-se transparente na sua intimidade”.As construções narrativas aqui são poéticas sem serem pedantes; são simples sem serem simplórias e mostram o domínio literário de uma artista que não só escreve com refino espontâneo, como também nos presenteia com ilustrações alegres e intensas.Katia Gerlach respira literatura e sua literatura exala muitas vidas. São vidas que saltam das folhas deste livro, as quais, sem pestanejar, convido ao leitor inalar, porque estes contos, com crônicas enxertadas, engrandecem nossos espíritos e nos dão asas que quebram as parcas linearidades do ilógico cotidiano. Para o Ben e para o Mal. ” – Thiago Mourão 


Jogos e trapaças – e uma prosa fumegante

Quantas histórias podem passar numa alfândega supostamente cerrada? O que fazem os personagens quando estão sonhados na cabeça irrequieta de um autor? De que forma vida real e ficção entram em constante pugilato? Essas questões me passam quando tenho em mãos qualquer coisa escrita por Kátia Gerlach, autora que despontou com o já hipnótico Colisões Bestiais (Particula)res, pela editora Oito e meio. Vem daí que, numa linha que aproxima muito um tipo de narrativa labiríntica, lembrando bem uma mistura de Carlo Emilio Gadda com Almodóvar, temos uma prosa iluminada, cheia de referências, com personagens tão inquietos que parecem estar à beira de um ataque de ficção.
Kátia, verdade seja dita, não é leitura breve, mastigável, não é fast-food. Cada parágrafo requer atenção de detetive, requer mais um leitor-analista do que um flâneur com déficit de atenção. A galeria de personagens pede um pouco mais – entre um riso de galhofa e um susto por um turning point. Nada de spoiler aqui, estamos tratando de uma nova prosa, estalando e virtuoses. Dmitri, Robinson, Fyódor e Anna, entre outros personagens, não apenas ficam gravados na lente mnemônica do leitor, pois há muito mais aspectos, cenários, movimentos, encaixes, notações de um xadrez de vidas na prosa de Kátia do que sonha nossa vã imaginação.
Jogos e folias pode muito bem servir como um livro-tabuleiro – e contar um pouco do que se passa aqui pode estragar a festa. Só para constar, usando ainda, temerariamente a tal teoria das camadas de cebola a La Piglia, tem muito mais subterrâneo sendo contado aqui do que na claridade da superfície retalhada, Kátia Bandeira de Mello Gerlach entre cidades e cruzeiros, mazelas e joie de vivre. Desde que se entenda como o espectador abusivo que é, um leitor de um livro de Kátia Gerlach não tem sossego: tem que trabalhar na peça burlesca com que ela monta seu espetáculo. Assim,
a literatura faz aquele salto em que a desdiz, não deixando margem de classificação, como são os bons textos que não se contentam com pouco. Aqui, o que se espera é o inesperado. Truque de quem já trilha com segurança o caminho das pedras da ficção. – André Ricardo Aguiar

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